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Morte e Vida em Heliantos: uma experiência amazônica


paramos em Brasília dois dias antes da posse de Lula. exaustos e com poucas horas pra dormir caminhamos até o único hotel próximo ao aeroporto. o Planalto e sua amplidão sonora onde se escuta o silêncio que vem de longe. uma linda obra de arte na qual os pobres candangos que colocaram a mão na massa ficaram pra fora do avião.



nada mais plano que o espelho e a terra que abrigou a capital. dizem que os idiotas criaram a teoria da terra plana ao chegarem pro cercadinho bolsonarista.


daqui dois dias será decretado o fim do governo fascista e a volta da alegria ao país.


em algumas horas acordamos e Bárbara fotografou pássaros brasilienses do cerrado. nosso destino é outra vegetação:


a floresta amazônica




viajamos de mãos dadas porque temos medo de avião. por esse motivo evito olhar pela janela, mas não poderia perder a oportunidade de olhar a floresta e o Rio Tapajós. do alto vemos o cartão postal turístico: a Ilha do Amor. e alguns machucados na floresta.


encontramos Anderlan, o rapaz que contratamos para o transfer, e ele nos levou de Santarém a Alter do Chão. no caminho uma grande área desmatada para a construção de um resort. também uma escola que homenageia Doroth Stang. pela estrada, diferentemente dos pastos e plantações das rodovias paulistas e paranaenses, árvores da floresta. curiosamente num trecho desmatado havia uma igreja universal do outro lado da via.



paramos num mercadinho pra comprar coisas pra café da manhã. um absurdo de caro. passamos pelo centro de Alter e adentramos ruas de solos naturais passando por alguns locais curiosos como a pintura de uma sereia horripilante com um pescador assustado.


no meio da floresta uma construção de madeira. três chalés e um complexo com cozinha, segundo andar em construção e ateliê. um escritório a céu aberto e uma mesa no centro do terreno para refeições com um grande grupo de pessoas.




é o Campo de Heliantos da escritora e grande amiga Graziela Brum.



Grazi nos recebeu e nos apresentou Mair, seu parceiro no Campo de Heliantos. um homem de traços indígenas que terminava seu almoço tomando uma coca-cola.



- esse é o Mair.

- já viu índio bebendo coca cola? - disse ele.

- é a primeira vez ao vivo. muito prazer, querido.

- bem vindos vocês! já gostava de sua voz nos áudios, Vítu.

- é bom que dá pra ouvir na velocidade dois e parece que está normal.


nos apresentaram a cachorra Cecília [ Meirelles ] e os gatinhos de Heliantos. dois filhotes. um branquinho lindo por qual eu e Bárbara nos apaixonamos e levaríamos no avião, se fosse possível.



no ateliê encontrei o Galáxias de Haroldo de Campos e o pequei pra ler.



- Graziela, você vendeu meus livros?

- claro, Vitor. estava precisando de dinheiro.

- bom, vou te dar um exemplar do "O que a gente não faz para vender um livro?" pra você vender também.

- será de bom uso.


Graziela leu o arquivo em PDF pra escrever sobre, mas achou por demais comercial.


- Grazi não gosta do livro.

- não é que eu não goste. eu acho que é comercial. a tua literatura de alto nível é "A moça caminha alada sobre as pedras de Paraty". esse livro é um dos melhores da geração. agora você está querendo se comunicar. que nem o Leminski, não é assim que você diz?


Grazi e Mair estavam nervosos com pessoas que ficam criticando os novos hábitos indígenas e uso da tecnologia. como disse uma amiga: “na experiência amazônica há sempre um gringo chato julgando”. e nossa experiência não seria diferente. o Campo de Heliantos recebia um artista italiano para uma residência artística de três meses que estava incomodado com o fato dos índios não estarem nus no meio da floresta e que julgava a vestimenta das garotas locais, dizendo que eram cafonas. ele estava ali para fazer um documentário sobre as pessoas locais que convivem com a Amazônia. como documentarista devo dizer que o primeiro erro do documentarista é julgar. e após esse erro já não há motivo de ser.


como não costumo julgar as pessoas, puxei conversa sobre o cinema italiano e brasileiro com o Italiano, que conhecia bastante coisa dos artistas da nossa terra. eu, admirador do cinema italiano, e não dá pra não ser, falei sobre as coisas que conhecia. Antonioni, Vittorio De Sica, Fellini, Bertolucci, até chegar em Pasolini. por quem compartilhamos um gosto especial pela obra de provocação e confronto e falamos sobre a trágica morte, o assassinato por um garoto de programa. a que muito se discute se não foi uma encomenda fascista. e comentei sobre as trágicas mortes de artistas homossexuais brasileiro, como o poeta curitibano Wilson Bueno que também foi assassinado por um garoto de programa. e mostrei o trailer do documentário dos Dzi Croquettes, que ele não conhecia.



- alguns deles morreram tragicamente. assassinados.

- sério?

- e influenciaram todo o teatro musical brasileiro e também a música. o tropicalismo, Ney Matogrosso e Secos e Molhados beberam na fonte.


quando falei de Lane Dale, ele ficou impressionado, pois conhecia o coreógrafo.



Bárbara começou a fotografar os detalhes do lugar e Mair começou a nos ensinar coisas enquanto trabalhava as madeiras. o fotografei e ouvimos um barulho vindo do céu.


- que bicho é esse?

- não é bicho não.

- é um avião?

- não. é um paulista.

- paulista?

- sim. eles vêm com essas merdas de drone ficar voando aqui.

- que idiotas. eu trouxe o meu, inclusive, pois também sou paulista.


rimos e riríamos e choraríamos com essa pessoa incrível que é Mair e com esse encontro de amizade dele com Grazi e desse nosso (re)encontro.



Grazi nos guiou até a praia e antes de sair de Heliantos, Bárbara identificou uma aranha camuflada no tronco e começamos a perceber a habilidade dos bichos amazônicos de se esconder. no caminho Bárbara fez uma foto que simboliza muito esse portal de quem sai de São Paulo para visitar a Amazônia.




- essa é Jacandá 2. mais tarde a gente pode se encontrar e dar um passeio na Bajara Literária pra ver o pôr do sol.


as árvores eram os guarda-sóis naturais e nosso encontro com o Tapajós foi um déjà-vu onde anjos passaram por nós. quando nos conhecemos estava num momento crítico da minha vida e Bárbara me convidou a viajar. a gente mal se conhecia e aquela mulher me acolheu. era o início de uma amizade onde eu estava dentro de um mar calmo a olhando na areia de uma ilha tentando entender o que estava se passando naquele exato instante do universo. hoje, dentro do Tapajós, eu não tentava entender mais nada. sentia essa água doce me envolver o corpo e a alma e qualquer coisa que exista de divino nos seres vivos como eu a sinto quando nos abraçamos, nos olhamos, nos sorrimos. como eu sinto o mundo quando nos amamos. esse amor, é pra mim, o pulmão do mundo.



à tarde caminhamos em direção ao centro pela praia e avistamos a Bajara Literária no rio, onde esperamos Grazi e Mair para irmos até a ponta ver o pôr do sol. junto veio o italiano e Alan, um dos hóspedes de Grazi. eu e Alan ajudamos Mair a pegar o motor da Bajara que estava guardado numa casa em frente ao rio. adentramos a embarcação chegamos a uma bela vista de um sol já posto. nesse momento vejo o vento batendo no rosto de Grazi e consigo ver a entidade Paraúcha. uma entidade serena quando está no mar e forte em seu Campo de Heliantos. e mais a noite a Paraúcha Pomba Gira do Carimbó.



as andorinhas voam e eu só vejo Bárbara e os reflexos d’água. Bárbara é outra entidade. a entidade dos meus sentimentos mais amorosos e sensuais. a entidade natureza. a entidade silenciosa. é o sorriso que a natureza dá pra mim.


ao voltar paramos no centro e comemos a comida típica nas barracas da praça. tomamos sorvete com sabores de frutas da região. pergunto a Grazi:


- temos onde comprar maconha aqui?

- cara, não sei. mas italiano comprou esses dias.

- italiano, você sabe onde comprar maconha boa?

- si si, vamos comprar. io também quero.

- vamos.


italiano nos levou até um hippie e eles negociavam maconha por cinquenta reais.


- eu só tenho nota de cem – eu disse.

- me dá logo essa nota de cem e pega cem logo.


hippie folgado da porra. dei logo os cem, pois havia polícia perto.


- a maconha está em casa. já volto.


o hippie sumiu.


- esse hippie é de segurança?

- espero que si.

- você não o conhece?

- não. pero a mulher dele está aqui.


uma hora depois e nada do hippie. a Paraúcha dançava carimbo na praça. havia uma senhora cheia de energia dançando carimbo. as danças e os ritos se misturavam em meus sentimentos. via pombas giras e ciganos.


eu e Bárbara após longa viagem decidimos ir pra Heliantes e deixar a encomenda pra trás. pegamos um táxi junto com Alan e o taxista foi relutente em nos levar. longe do centro pro lado da floresta e sem asfalto não é um lugar onde os taxistas querem ir. eles querem ir pra Santarém, pra parte urbanizada.


tomamos banho no chuveiro à céu aberto e de água gelada junto ao mato e aos bichos. uma experiência para poucos seres urbanos. nesse primeiro banho o besouro ainda era um incômodo. as formigas trabalhando no contra luz era tão belo de observar enquanto a água caía sobre os poros. nos deitamos e dormimos no chalé sem paredes pela primeira vez. cansados... desmaiamos.


em nossa primeira manhã tomamos café com Mair, que acordava muito cedo e já passava o café.


- deus ajuda quem cedo madruga, Mair?

- não.


esse diálogo eu inventei só porque achei engraçado e porque penso que se daria assim, conhecendo nós dois. o que disse mesmo foi:


- vocês sabiam que no futuro o café é passado?


uma de minhas clássicas que Grazi riu de tão besta que é. digo, besta o trocadilho.


- e o hippie voltou com a maconha?

- opa!

- e cadê?

- tá aqui.


com a maconha em cima da mesa tomamos café. o italiano apareceu e nos deu bom dia e disse pra Mair limpar a panela, pois tinha ovo e ele não tocava em ovos porque era vegano.


- como fazemos com maconha?

- como assim?

- quanto te dou pela minha parte?

- italiano, faz o seguinte. bola três baseados pra mim e pra Bárbara, pois a gente não sabe bolar, e já pega um pouco da maconha pra você.

- é mesmo?

- sim.

- ok. vou bolar com tabaco.

- não, com tabaco não.

- como não. a maconha é forte. fumamos com tabaco.

- eu sou ex fumante e Bárbara tem asma. a gente prefere sem tabaco.


nos distraímos e quando vimos ele bolou três baseados com tabaco.


eu, Mair e Grazi saímos pra comprar peixe. Anderlam veio nos buscar. o italiano foi junto e largamos ele no feira. numa rua próximo ao centrinho compramos um Tambaqui e uns filés de Pirarucu, dois peixes típicos da região. um pirarucu pode chegar até 200 quilos. tão carnudo como um salmão, mas até nisso o brasileiro gosta de consumir do estrangeiro.



mais a frente encontramos uma pitangueira e enchemos uma sacola com pitangas. fomos até o mercado e fizemos compras pra almoço e ceia e também para os outros dias. voltamos à feira pra buscar o italiano e desci pra comprar algumas coisas que Bárbara pediu. vi uma fruta da região que me ofereceram e levei também.


- tem mel?

- tem não. mas a moça dali deve ter. ô Tânia, o moço quer mel.

- tem mel, mas tem que buscar na casa de minha filha.

- não carece não, moça. tô de carona.

- que isso. é pertinho.

- se é pertinho, vamos lá.

- eu não vou, não. mas vou te explicar o caminho. só seguir reto aqui e quando ver o bambuzal, tem um lote, você vira à esquerda depois do lote e vai ver uma casa rosa.

- rosa?

- isso. rosa.

- então tá bão.


Tânia ligou pra filha e deixou avisado. entrei no carro e disse.


- vamos na casa rosa depois do bambuzal e depois do lote buscar mel.

- como assim?

- Tânia é boa de venda.

- quem é Tânia?


chegamos lá e mal tinha casas. no meio de terrenos baldios apareceu uma casa rosa no alto de um morro onde filha de Tânia tinha seu salão de beleza.


- Ô DE CASA!


apareceu filha de Tânia.


- vim buscar o mel. é você que tem.

- sou eu mesmo. pode vir buscar.

- tô indo.


peguei uma pequena garrafa pet com um mel bem aquoso. achei esquisito, mas agradeci e paguei o combinado. aqui tudo é caro.


- eis o mel.


Mair ficou olhando pra minha cara e deu risada.



de volta a Heliantos subi ao quarto sem paredes pra ficar com Bárbara. acendi um baseado com tabaco e dei um trago e apaguei.


um tempo depois desci pra ver se Mair precisava de ajuda e ele ficou me ensinando coisas sobre a cultura da gastronomia indígena enquanto o italiano reclamava de estarmos fazendo peixe pro almoço. filmei Grazi e Mair limpando o peixe e uma fala do italiano sobre sua experiência. logo depois filmei fala de Grazi um tanto crítica com o comportamento das pessoas que ficam julgando os costumes e cultura local. dei minha fala também que Grazi filmou até que chegou visita.



Maise, a dona da embarcação que contratamos pra fazer três dias de passeio. ela fez a vivência literária com Grazi e combinamos de trocar livros quando viesse nos buscar para os passeios. aliás, ficamos em contato com o barqueiro que trabalha com ela, o Bonifácio, que nos pediu para escolhermos o prato que iríamos comer no primeiro passeio na Comunidade, pois precisava deixar encomendado. foi uma longa conversa até que juntos com e influenciado por Bonifácio, escolhermos a galinhada. até porque comeríamos peixe em todos os outros dias e noites. e Minas faz parte de nossa história de amor.


o almoço estava pronto e degustamos o Tambaqui enquanto o italiano fazia careta. o que sobrou do almoço viraria pirão com olho e tudo e comeríamos numa outra noite. enquanto tomávamos café o italiano começou com uns papos de que índios não deveriam usar colares ou fazer colares.


- mas e esse colar que você está usando? – questionei.

- o que tem meu colar?

- é um colar de sementes.

- é.

- e quem fez?

- os índios.

- e por que você está usando?

- é porque é espiritual. você quer pegar?


me passou o colar e eu peguei.


- é pra eu vestir?


ele disse uma frase usando palavras em italiano que pareceu que ele estava sugerindo que se eu vestisse o colar teria que beijá-lo. ficamos, Bárbara e eu, um tanto constrangidos. fingi que não entendi.


- você não é escritor? um escritor deveria querer conhecer as palavras estrangeiras. ou a linguagem corporal.


- í Vitu, í Vitu – se expressou Mair dando risada.


devolvi o colar.


- acho que você está pirando nas ideias.


o café amargou e cada um foi pro seu canto e o italiano ficou ali em solidão. descansamos um pouco e convidamos Mair e Grazi pra ir à praia de Jacandá.


- eu e Mair vamos ter que receber os hóspedes que estão chegando. o italiano quer ir à praia também.

- a gente prefere ficar a sós ou com vocês que são nossos amigos.

- entendo perfeitamente.



passamos a tarde dentro do rio esperando o sol baixar. nosso amor como meditação. um longo olhar sobre o ano que vivemos separados e o quão desejamos nossa presença. o quão desejamos estar juntos com a natureza.


voltamos no fim da tarde e conhecemos os novos hóspedes. um simpático casal. um deles mais simpático e o outro um pouco mais contido. Grazi os convidou pra ceia:


- vamos fazer uma ceia mais tarde. a gente, o Vitor e a Bárbara compramos peixe e algumas bebidas. temos arroz e farinha. se quiseram ceiar com a gente.


o casal e Alan compraram bebida pra compartilhar com a ceia e o italiano fez sua comida vegana e comprou uma pequena garrafinha de bebida somente pra ele.


Mair fez um pirarucu no fogo de chão que ficou uma delícia. o italiano tentava se enturmar com o casal.


- o que vocês fazem?

- ele trabalha com TI e eu sou designer.

- hummm designerrrr. – debochou o italiano.


à mesa ceiamos e era uma delícia o peixe.


- muito bom, Mair!


Grazi como a divindade Paraúcha fez uma fala bonita sobre estarmos lá. eu como poeta também disse algumas palavras sobre a alegria de estar ali com Bárbara visitando uma das minhas grandes amigas Graziela Brum e com esse já grande amigo Mair e por estar conhecendo aquelas pessoas ali.



Grazi comentou aos hóspedes sobre “A moça caminha alada sobre as pedras de Paraty”, que eu havia escrito um livro muito bom. o italiano debochou da frase de Grazi sobre o livro.


- o que ele disse? – perguntou Alan.

- sei lá. esse italiano só fala merda.


Alan e Mair caíram na risada.


as pessoas começaram a se organizar pra ir ao centro ver fogos e beber, festejar. a minha festa é nas veias, nos hormônios, nos neurônios, nos poros, nos pelos. em tudo que reage ao amor. ficamos a sós em Heliantos passando a virada do ano entre nós.



no domingo, dia 1 de janeiro, chovia bastante na floresta e aproveitamos pra passar um dia num descanso assistindo a posse de Lula. enquanto tomávamos café na cozinha chegaram mais hóspedes. os pais e a irmã de um dos rapazes do casal. chegaram felizes e nos cumprimentaram. respondemos com tamanho entusiasmo e receptividade. Grazi foi mostrar o chalé pra eles. subi pra ficar com Bárbara no chalé.


quando Lula chegou ao carro que o levaria nos reunimos na cozinha pra assistir numa tela de notebook. o italiano fazendo deboche e ninguém ligando pra ele. enquanto o carro andava lentamente ficamos conversando outras coisas e Grazi nos contou sobre um curandeiro indígena que morava na vizinhança. reclamei da minha gastrite e perguntei se não podíamos visita-lo. Bárbara também tinha interesse nesse contato.


Grazi enviou mensagem para ele que respondeu que podíamos passar lá após o almoço. a chuva cessou para a nossa caminhada até a casa do curandeiro. não vimos a posse de Lula. enquanto o país vivia um momento histórico e de muita festa pra gente que lutamos com o que tínhamos contra o bolsonarismo, nós viveríamos algo muito especial pra nossa história.


ao chegarmos entramos num ambiente anexo. uma cozinha que se dividia com uma sala de reza e exposição de artesanato onde encontramos a esposa do curandeiro dando leite com farinha para um neném. aparentemente ela estava sem leite e repunha a proteína com esse alimento. falava muito pouco do português e nós não sabíamos nada de seu idioma. eu e Bárbara observamos o artesanato enquanto Grazi estava com seu olhar de Paraúcha. permanecemos em silêncio durante uns quinze minutos até o curandeiro aparecer. nos deu boas vindas e Grazi nos apresentou:


- Vitor e Bárbara são dois amigos de São Paulo que ficaram um tempo separados e reataram há alguns meses. daí eles queriam te conhecer.


ele sorriu discretamente num olhar silencioso.


- tá bem.


após isso olhou para sua companheira e também para seu filho. num movimento fora do tempo de sua tranquilidade, instantâneo instinto de defesa da prole, buscou seu filho do colo da mãe e o levantou em direção ao céu o sacudindo. o bebê engasgado ia ganhando cor de sufoco e a sacudida não surtia efeito. roxo e assustado o menino não reagia. o curandeiro se desesperou em gritos:


- meu filho! meu filho!


o abraçou contra o peito e desferiu tapas em suas costas. chorava.


- meu filho, meu filho!


naquele instante pensei que o bebê iria morrer em nossa frente no primeiro dia do ano. pensei em todas as mortes que me afetaram e na probabilidade da morte do amor entre nós dois. fim que nunca acreditei e durante mais de um ano separados tentei mostrar que éramos mais do que a realidade. o renascimento e o tempo provaram a minha crença. para um ateu fervoroso como eu, me sobrou as crenças mais lindas: o amor e a poesia. e foi o que Bárbara me disse quando reapareceu em minha vida: que nós dois somos poesia.


a poesia e o amor também lidam com toda a complexidade de se crer em algo. a desilusão em se crer em Deus muitas vezes vai embora quando uma criança morre.


assim como o país, o ano e a nossa poesia, hoje aquele bebê renasceu aos tapas de seu pai que o salvou do engasgo. a mãe, que nunca presenciara antes um engasgo, batia no pai


- não bate no meu filho!


com o bebê salvo e longe da morte o curandeiro agora se defendia tentando explicar o que acontecia enquanto cessava o choro do bebê que agora com fôlego chorava num ato de libertação. Grazi ajudou no diálogo dizendo que o pai salvou o filho e sorrindo de maneira confortável. o riso da Paraúcha. eu e Bárbara, um tanto aliviados de não ver o pior, nos olhamos cúmplices da vida. cúmplices de um novo momento de extrema beleza. o curandeiro num acalanto indígena acompanhado do som da maraca acalmou seu menino e o colocou adormecido nos braços da mãe e a família se ausentou indo ter seu momento a sós no redário.


nós três nos olhamos sem saber se continuávamos ali, após esse forte acontecimento, ou se íamos embora. antes de decidirmos chegou um casal e nos encontrou ali. era um jovem pajé que ficou um tanto conhecido por motivo de um documentário. discípulo do curandeiro. Informamos o acontecido a eles que chegaram ali por acaso para uma visita surpresa e eles se achegaram aos amigos.


ao voltar para o recinto o curandeiro, ainda atônito, veio nos dizer algumas palavras para aliviar sua tensão. Grazi perguntou se preferia que voltássemos em outro momento e ele disse que não. fizemos algumas perguntas sobre sua história e questionei ele sobre dois quadros com cavalos nadando em ondas de um rio que estavam penduramos na parede. ele nos contou sobre visões que teve na infância e que pediu pra um artista retratar essas visões. contei-lhe uma história sobre um indígena que fugindo de um ataque à aldeio se transformou num cavalo e fugindo pelo rio foi desaguar no mar e virou um cavalo marinho.


nos contou sobre sua história com o jovem pajé e também sobre o seu mestre, com quem fazia os encontros por chamadas de vídeo. o italiano ia surtar, pensei. aliás, alguns amigos perguntaram, rindo, se os indígenas que encontrei estavam usando nike e eu disse:


- por coincidência, sim. sabe por que eles usam roupa de marca?

- não. por que?

- pelo mesmo motivo que as pessoas que vivem na rua. eles não tem dinheiro pra comprar roupa. usam roupas de doação.


o amigo ficou encarou a resposta com seriedade. nosso curandeiro disse que o jovem pajé ia participar do rito. sem entendermos o que ia acontecer, aguardamos. fui ao lado de fora observar o vento e presenciei o pajé fazendo uso do rapé. algo sério vai acontecer, pensei.



enquanto Lula subia a rampa do planalto acompanhado de um indígena, eu e Bárbara éramos casados pelo curandeiro e pelo pajé numa cerimônia que nos emocionou muito. tanto pela nossa história, quanto pela história recente e longínqua desse país. era o fim da maldade e o fim do fim. abençoados por Tupã!


recebemos de presente duas alianças de madeira sagrada abençoadas pelo nosso curandeiro que nos fez entender a frase “o amor cura”. era a primeira vez que colocava uma aliança. no dia seguinte elas se soltaram de nossos dedos e foram viver no fundo do Tapajós.


voltamos caminhando pra Campo de Heliantos.


- Grazi, eu casei e você é nossa madrinha.


rimos.


passamos na venda e compramos algo pra beber e pro café. e corrí pra dar a notícia ao Mair.


- Mair, nós casamos! e você é o padrinho.


rimos.


- mas eu não estava lá.

- isso não importa. sabe que eu fui padrinho de casamento uma vez, mas também faltei na cerimônia.

- como assim, Vitor? que absurdo!

- sim, os noivos também acharam. mas me perdoaram. vida de freelancer é uma merda. peguei um trampo de doze diárias fotografando praias e ilhas e não deu pra recusar.


ainda naquela tarde desci pra tomar um café e quando cheguei à cozinha o italiano estava reclamando pra Grazi que não tinha pego a maconha. quando ouvi fui dizer que a maconha estava na prateleira da cozinha pra todo mundo pegar, Grazi me interrompeu.


- a maconha acabou.

- mas como? eu nem peguei nada.

- mas como, digo eu. você não pegou ontem?

- não.

- moscou.

- como?

- você como artista deveria entender palavras em nosso idioma, já que está fazendo um documentário sobre um lugar do Brasil.


deixei eles conversando e fingi que não era comigo. subi sem o café e deitei ao lado de Bárbara.


- meu amor, cadê o café?

- esqueci.

- como assim, meu amor?

- o vacilão do italiano estava reclamando que não pegou maconha.

- como assim? você deu a maconha na mão dele.

- pois é. bolou três baseados com tabaco e não pegou maconha pra ele.

- e você deu a maconha?

- a Grazi disse pra ele que acabou.

- e já acabou?

- não. tinha deixado na prateleira da cozinha, mas Grazi tirou de lá.

- que confusão.


no jantar degustamos o pirão enquanto o italiano olhava com nojo.


- bateu até o olho, Mair?

- tudinho, Vitu.


primeira segunda-feira do ano. o dia da semana com o maior índice de suicídio. o italiano acordou reclamando pra Grazi que eu não dei maconha pra ele, que o gato vomitou no seu quarto, etc e tal e enquanto nos arrumávamos ouvi a voz de Grazi gritando.



- gente, o que é isso?

- é a Paraúcha virada no giraia colocando o europeu no seu devido lugar. vou descer, pois preciso ver isso.

- traz café e depois me conte.

- claro, meu amor.


Mair, sentado feito um personagem de western que passa a cena observando antes de matar todo mundo, observava silenciosamente. Grazi batia na mesa e rodava a baiana, a gaúcha e a paraense.


- você não vai me desrespeitar aqui e não vai desrespeitar meus convidados. você está no Brasil! você está na Amazônia! então abaixa a sua bola.


servi um café e dei um gole enquanto observava atentamente o momento de socar a cara de um europeu safado. a Paraúcha continuava a entoar o seu direito à selvageria. termo que Gero Camilo usou ao me ceder uma entrevista durante uma manifestação contra Belo Monte e que achei muito bonito. o italiano pediu arrego e caminhou até seu quarto. Grazi sentou e bufou. eu e Mair apenas olhamos e deixamos ela se acalmar sozinha. quando se acalmou:


- Graziela, que cena linda. devia ter filmado.

- a bicha é braba, Vitu.

- eu vou falar pro italiano que os italianos chegaram no Brasil pra fazer trabalhos servis e não pra mandar. vamos prendê-lo em Heliantos e fazer ele limpar nossas roupas.

- ele não sabe nem lavar roupa. fica pedindo pra gente fazer isso pra ele.

- é realmente um bosta.


Grazi e Mair saíram. iam passar o dia fora pra tirar o documento de Mair e resolver outras burocracias da vida. fiz um omelete pra mim e pra Bárbara. Maise chegou pra nos buscar.


- putz... e essa louça, meu amor?

- fiquem tranquilos. temos tempo.

- tudo bem. o italiano lava pra gente.

- ai, meu amor.

- ele merece.


eu e Maise trocamos os livros e antes de chegarmos no centro recebo mensagem de Grazi com print da mensagem do italiano reclamando que deixamos a louça suja.


embarcamos e adentramos o mar aberto do Rio Tapajós. de início fazemos silêncio pra ouvir o rio e o vento conversarem. puxo algum assunto pra nos enturmar e Bonifácio é muito atencioso. respondendo a todas as curiosidades. nos deixa numa ponta e diz que temos alguns minutos pra aproveitar o local.



- é bom de se banhar naquela lagoa que se formou ali?

- rapaz, não é muito aconselhável por causa de que às vezes quando a maré baixa o rio deixa, além das águas, algumas arraias.

- e é perigoso?

- dói. bastante.

- tem um apresentador que morreu por causa de uma ferroada de arraia. o Steve Irwin.

- não é muito o caso daqui, mas dói.


eu e Bárbara sempre levamos tempo fotografando. uma vez escrevi que os espelhos d’água é uma forma do céu tocar a Terra. e nós tocamos a água e por ali ficamos alguns minutos.


de volta ao barco Bonifácio nos diz que o pulmão do mundo não é a floresta, mas sim os rios. só que o rio precisa da proteção da floresta pra resistir respirando.


- pois então, lá em São Paulo era igual aqui. se você olha o mapa hidrográfico só tem água naquela cidade. mas mataram os povos que lá existiam, a floresta e os rios.


Bonifácio nos deixou numa praia.



- o que tem pra dentro dessa mata, Bonifácio?

- nada.

- nada?

- assim, tem um lago, mas tá seco.



descemos e vimos uma árvore com espinhos e um fruto. Bárbara ficou fotografando pela praia e eu fui ver o lago.



minha barriga começou a doer e eu precisava me libertar dessa dor. olhei o lago seco, os cachos de marimbondos e me senti tão livre em meio à natureza. de repente estava nu sentindo o vento. escolhi um lugar e literalmente caguei no mato. depois corri até o rio e me limpei.


- AMOR!

- oi, meu amor!

- ACONTECEU ALGO MÁGICO!

- o que?

- A MAIS BELA POESIA!

- o que você fez, Vitor?

- EU CAGUEI NO MATO, MEU AMOR!

- e precisa me contar gritando?

- SIM!

- você enterrou a merda?

- claro que não.

- ai, Vitor!

- se eu fosse você também faria um cocôzinho no mato, meu amor.


agora sim, a próxima parada será na Comunidade Coroca, uma comunidade ribeirinha com um lindo projeto que cuida das tartarugas da Amazônia durante o período do nascimento até o momento que elas estiverem fortes para viverem. sem esses cuidados a maioria delas morreria na infância.



para chegarmos lá atravessamos o encontro das águas do Tapajós com o Rio Arapiuns.


almoçamos a deliciosa galinha caipira e um suco de fruta local. a cada pessoa que passava Bonifácio nos dizia que aquele era um parente, primo da esposa, irmão. ele e sua esposa tinham uma casa na comunidade, mas por enquanto moravam em Santarém.



após o almoço o guia nos levou até o tanque para ver as tartarugas filhotes e nos contar a história do lugar. caminhamos até o lago onde vivem as adultas e no caminho vimos algumas árvores. entre elas um Jenipapeiro, árvore e fruto tão característica em nossa telúrica fluvial e tão bonita em nossa poética, desde o Jenipapo Absoluto de Caetano ao poema O Rio de João Cabral de Melo Neto onde na paisagem aparece a árvore.



no lago subimos numa pequena balsa onde dois passarinhos apaixonados nos recebem e de onde vimos a beleza das tartarugas que se aproximaram para se alimentar.


de lá seguimos o caminho para as abelhas onde muitas outras árvores nos agraciaram.



visitamos as caixas das abelhas onde se recolhe o mel por elas produzido.



caminhamos por um lugar onde vimos uma Samaúma ainda jovem e vimos uma antiga casa onde viveram os primeiros ancestrais das pessoas na comunidade.



em frente a lojinha fotografei uma árvore interessante que destoava das demais por sua falta de verde. ainda que seca vislumbrava sua vida em meio a paisagem.



no caminho de volta paramos para ver o pôr do sol e paramos num lugar longe das embarcações festivas. Bárbara avistou um macaco no meio do mato que sumiu rapidamente. ficamos por ali fotografando enquanto o sol se escondia atrás das nuvens.



ao chegarmos ao centro Maise estava lá para nos buscar.


- gostaram do passeio?

- adoramos o passeio e o Bonifácio.

- que ótimo! Bonifácio é um querido. vamos? tive que deixar meu carro na rua do cemitério, pois não tinha lugar pra parar.

- olha só! podemos entrar no cemitério?

- sério?

- sim. eu entro no cemitério de todos os lugares que eu vou.

- eu nunca entrei no cemitério de Alter.

- então é hoje.



entramos no cemitério. Bárbara e Maise ficaram conversando enquanto eu observava e fotografava o cemitério todo envolto em resquícios de floresta. os cemitérios mais interessantes que já fui são em lugares pequenos como o da vila de São Jorge na Chapada dos Veadeiros, lugar onde se demora a morrer alguém. e no Farol de Santa Marta onde o cemitério fica no morro com vista pra 180 graus de mar. por enquanto é o cemitério onde quero ficar após minha morte.



Bárbara chamou-me atenção para um canto do cemitério onde os pequenos túmulos eram rodeados por pedaços de madeira pintadas de branco formando berços. era a área das crianças. Sempre que entro num cemitério fico lá dentro até me deparar com o túmulo de uma criança. sempre me espanta a brevidade de uma vida tão curta. geralmente elas estão espalhas entre adultos e nos deparamos com elas ao acaso. aqui em Alter há um espaço para elas que ocupa quase um quarto do terreno. há lugares no Brasil onde o cemitério nos mostra suas características de mortalidade. aqui a infantil parece ser elevada.


saímos de lá e Maise nos deixou em Heliantos. Grazi e Mair não estavam. enquanto Bárbara foi ao quarto buscar toalhas para tomarmos banho fiquei sozinho na cozinha guardando algumas coisas que compramos no caminho. me deparei com a crônica de uma morte anunciada. Caim e Abel. a cultura bíblica permeando a vida. ou a vida permeando a bíblia. o gatinho cinza surrava seu fraco irmão. o gatinho branco, sem forças, agonizava ao espancamento. afastei o cinza inúmeras vezes. mas eu não ficaria na cozinha para sempre.


na manhã seguinte voltei a ver Grazi e Mair no café. me dá uma imensa alegria vê-los pela manhã. Grazi disse que italiano reclamou novamente sobre a maconha. resolvi que iria ignorá-lo. tomamos café e Maise nos buscou. hoje entraremos na mata virgem.


a viagem hoje era mais longa até a Flona, comunidade onde fica localizada a floresta onde encontraremos a gigante samaúma. quando chegamos deixamos nosso pedido feito no restaurante. Pirarucu ensopado. somos atendidos por uma moça de traços indígenas na recepção que nos colocou em contato com o guia. levamos amendoim, frutas e água. o passeio dura em média umas 4 horas. levaríamos por volta de 6.


a primeira parte do passeio era de floresta secundária. paramos numa árvore chamada Breu Branco do qual o guia tirou um leite branco e pediu que cheirássemos.


- isso é bom pra sinusite.



ateou fogo num pedacinho de casca dessa árvore para nos mostrar o cheiro mais forte.


um pouco mais adiante nos deparamos com uma formação descendo de uma árvore. uma espécie de estalactite que encontramos em cavernas.



- isso é um formigueiro. as formigas tapibas são usadas pelos indígenas como repelentes e também para espantar onças.

- e como eles as usam? misturam com alguma coisa?

- assim.


ele meteu a mão no formigueiro e depois espremeu as formigas pelo seu corpo.


- experimenta.


um tanto receoso agarrei a ponta do formigueiro e logo em seguida em gestos desesperados esfreguei as formigas contra meu corpo.


- pelo menos espantarei as onças.

- elas dificilmente aparecem. são muitos grupos fazendo o passeio e acabam espantando os bichos.

- não veremos os bichos?

- provavelmente não.

- a onça não faço tanta questão. você já viu alguma vez?

- uma vez estava guiando um grupo e escutei suas unhas arranhando uma árvore. avisei o grupo que era uma onça e pedi pra eles ficarem calmos, erguerem os braços e não se mexerem.

- e aí?

- e aí que ela apareceu pra gente.

- o que aconteceu?

- ela nos olhou e depois foi embora desaparecendo no mato.

- deve ser lindo ver isso.

- e é.



passamos por alguns cipós. há diversas espécies deles. um trançado que achei muito lindo, o Escada de Macaco.



com um cipó mais fino o guia fez uma coroa pra Bárbara. minha rainha.


parei para fotografar uma flor vermelha e linda que me impressionou muito.



- cuidado com a beleza, pois ela mata. essa flor é venenosa.


há uma imensidão de conhecimentos na natureza. nós da cidade não sabemos nada da vida natural. me espanta muito tudo que é tão belo quanto um poema bem construído. me sinto tão perdido quanto em frente a um livro com toda a história da mitologia grega. uma cultura tão rica em detalhes e histórias. difícil lembrar de tudo que aprendi nesse dia.



as árvores vão tomando imensas proporções e são tão altas e penso o tão altas elas poderiam ser ou já foram na cidade onde cresci. a cidade dos arranha céus. a cidade das sombras. a cidade desmatada. a natureza assassinada.


em frente a uma seringueira toda riscada me lembro da seringueira da praça em frente ao boteco do Seu Davi onde tomávamos tubaína na rua de minha infância. o leite da seringueira foi uma boa brincadeira para as crianças das ruas. o líquido branco na folha e os movimentos das mãos formando bolas de borracha.



- a gente corta o casco com uma profundidade mínima que não causa danos à árvore. apenas para usar o leite para brincar. fazíamos bolas de futebol com o leite da seringueira.


as crianças tão distantes e tão parecidas frente à árvore. o espírito do mundo é um só.



mais uma flor, conhecida como Pica Pau, nos aparece. sempre me pergunto porque as pessoas se preocupam mais com o designer de um carro do que com a beleza das flores.


em frente, ao pé de uma árvore, o guia para e tira da mochila uma pedra transparente.



- esse é o breu. se forma com o líquido dessa árvore.

- isso é um fóssil?

- é isso. vou cortá-lo ao meio pra vocês verem.


deu um pedaço pra gente e ficou com a outra metade.


- tem um ponto aqui dentro.


ao olhar a parte dele, espantou-se.


- olha, estou com esse breu há alguns meses. tem um escorpião dentro dele. e vocês estão com a ponta do rabo.

- que maravilhoso!

- agora sim eu entendi o filme Jurassic Park.



alguns bichos, vivos ou mortos, se apoiavam nas folhas, se camuflavam.



árvores de diferentes formas iam se contorcendo e subindo entre as folhas. algumas sustentavam fungos. diversas e divinas espécies de cogumelos.



uma das belezas de acontecimentos se dava quando Bárbara admirava a beleza de uma árvore. nesse momento eu admirava a beleza do mundo nos olhos de Bárbara. o mundo é mais belo quando refletido nos olhos do amor. ela tocava a árvore e conversava com o deus que ela tinha pra si.



fiz a foto que imprimiria e a presentearia. a imensidão do divino em sua frente e ela fazendo uma das coisas que mais sente prazer: a fotografia.


outras árvores, tão vasto o enigma de suas formas, iam nos desvendando o mistério da criação do mundo. Deus realmente não existe, pensei.



o artesanato das aranhas filtram nossos sonhos mais impossíveis. é o sol iluminando o cinema da alma antecedendo o maravilhoso encontro.



estávamos em frente a samaúma de 450 anos de idade. não sabia de que forma poderia fotografá-la e nem tinha lente para isso. apenas registrei minha passagem por ali. dando a volta por ela fui observando os detalhes que nos envolvia às suas raízes. nesse momento o guia nos deixou a sós e em silêncio sem nos explicar noda sobre ela. mais tarde, ao encontrar outra mais jovem, nos contou que quando encontramos uma samaúma, próxima a ela terá sempre mais algumas. perguntei se eram pássaros e ele disse que era ela mesma devido ao tamanho, conseguia espalhar suas sementes.



num trecho que sua circunferência encontrei entre suas raízes algo parecido com o estúdio do fotógrafo Irving Penn, que criava uma ângulo de 45 graus com cortinas de teatro, usando a luz natural para fotografar retratos. fiz um retrato de Bárbara.



nos despedimos da grande mãe samaúma e caminhamos até o mirante onde olhamos para as camadas de rios e floresta.



continuamos a caminhada, agora já descendo a trilha, e algo mágico aconteceu.


- tão ouvindo?

- o que?

- é um bugio.

- onde?

- não sei. mas cuidado com a cabeça. ele costuma jogar coisas.

- que coisas?

- fezes ou galhos.


não consegui fotografar. num momento tão ligeiro que transformou minha visão em slow motion vi o bugio no alto de todas as árvores. parou num galho e me encarou por um segundo. depois sumiu.


chegamos num igarapé de águas cristalinas e reflexos verdes.



- esse é o Igarapé do Paulo.

- quem é Paulo?

- é um homem que vivia, junto de sua família, aqui na floresta.


mergulhamos... e fotografamos. ali relaxamos e esquecemos de tudo que existia além daquele momento.


na volta foi no estilo sebo nas canelas. já havíamos atrasado muito o passeio fotografando. estávamos cansados e famintos. tudo que ia surgindo de mais interessante vimos na subida. apenas em um momento o guia nos parou.


- seguinte. vou passar primeiro caminhando bem rápido. depois que eu passar vocês passam correndo.

- o que está acontecendo?

- formigas tucandeiras. uma das piores dores do mundo. e pode matar.


após dizer isso, correu. olhamos o chão e vimos uma imensidão de formigas. sem pensar muito, corremos.


caminhamos em ritmo alto até o fim da trilha, quando amansamos um pouco e fomos conversando. perguntei sobre as lendas da região e o guia nos contou uma história sobre um morador da região que virou um cavalo:


- uma vez apareceu um cavalo num lugar aqui da comunidade. e achamos estranho, pois aqui nunca havia aparecido cavalo. um menino disse que tinha visto essa pessoa andando pela região naquela noite. e ninguém mais viu ele durante a noite e o cavalo desapareceu. daí ficou-se essa história pairando por aí.

- e o boto?

- rapaz, tem um morador daqui que chegou em casa numa tarde e pegou a esposa fazendo amor com outro homem na rede. quando ele gritou o amante saiu num pulo e foi correndo em direção ao rio e sumiu lá dentro. a cena foi tão impossível pra ele e ficou mais impossível ainda quando se aproximou da rede e sua esposa estava toda úmida por uma gosma. e ele diz que perguntou quem era e a esposa respondeu que a pessoa tinha a forma do marido. daí o próprio marido conta essa história de que o boto transou com sua mulher.

- e você acredita na história?

- eu não.



nos despedimos aos risos e almoçamos um belo de um pirarucu ensopado. depois caminhamos até a beira do rio onde encontramos uma bela imagem de uma cadeira vazia observando o horizonte fluvial.


na volta paramos numa ponta de praia para nos banhar e ficamos um tempo ali nos amando dentro do Tapajós.



fomos ver o pôr do sol e ficamos à fotografar enquanto Boni mexia no motor do barco. mais um dia encantado ficando pra trás.


de noite mais um pouco de resenha com Grazi e Mair. enquanto jantávamos o italiano chega dizendo:


- olhe só o que comprei. maconha colombiana! muito boa, não?


continuamos nossa conversas. li uma página de Galáxias e fiquei pensando na existência. quantas impossibilidades existe na vida em relação a todas as coisas possíveis. eu amo, e isso é a única coisa que importa. ser, apensar ser. converso com Grazi sobre as necessidades do mercado, de estar em função dos encontros políticos do mercado.


- Grazi, apenas escreva. você é igual a mim. não tem saco pra essa puxação de saco e amizades por interesse. então, apenas escreva.


subimos pra descansar. adormecemos abraçados como quem abraça o rio. o som nos encantava. eu amo.


de manhã, busquei café pra Bárbara na cozinha. o italiano estava reclamando. dei bom dia pra Grazi e Mair. levei café à Bárbara e voltei à cozinha pra fazer queijo coalho na frigideira. Grazi faz careta a cada fala do italiano. Mair segue educado como quem contempla a paciência de que em alguns dias nunca mais verá o italiano.


Maise vem nos buscar e no caminho pergunto sobre a política local. ela nos conta causos que geram debates como por exemplo o asfaltamento de ruas de terras. assuntos complexos que dividem defensores do meio ambiente, que além da causa máxima da defesa da natureza, também contempla a defesa do que mais traz dinheiro ao local, que é o turismo.


- ano passado a notícia de que as águas ficaram insalubres por causa do garimpo matou o turismo em Alter.


do outro lado do debate estão as pessoas que defendem a facilidade do acesso, que é bem ruim pra quem mora além da urbanização. pra nós que nascemos com energia elétrica é fácil opinar de longe. mas é uma situação, que para políticos atrás de votos, é fácil de defender. porém, o asfaltamento traz estradas, aumento populacional, grilagem de terras e desmatamento e por aí vai desencadeando na poluição do rio.


já conversando com Bonifácio rumo ao canal do Jari, pergunto:


- é fácil chegar no garimpo, Bonifácio?

- rapaz, demora, mas chega.

- queria ir lá fotografar.

- é?

- sim, mas é possível que não saia vivo, né?

- é. não é um lugar bom.. muita doença. malária.

- você já foi?

- minha filha trabalha lá.

- no garimpo?

- sim. num hotel.


como nas cidades de interior de São Paulo ou Paraná onde as fábricas chegam fazendo mal para o meio ambiente, muitas vezes o que é necessidade de urgência para a população é a oportunidade de trabalho, de dinheiro. às vezes a publicidade do garimpo trabalha nesse sentido. como o tráfico e a milícia, trabalha nas brechas do sistema, e funciona e cresce como no negócio. e os próprios políticos que criam e votam as leis da sociedade brasileira fazem parte do negócio.



no caminho pelo canal do Jari fomos encontrando belas imagens da população que ali vive. as arquiteturas das casas que convivem com as cheias e esvaziamento dos rios. o sonho do poeta: a rede à margem do rio. a característica das árvores e suas raízes que por meses vivem submersas.



paramos para uma visita e comprar um queijo manteiga na casa de uma família. à beira do rio pai e filho nos recebem. o queijo seria degustado no café da manhã do dia seguinte. gorduroso, com gosto de manteiga.



seguimos para visitar o local onde vivem macacos que são alimentados por uma família. dezenas deles surgindo serelepes e ágeis pulando do galhos pra cerca, da cerca pro ombro do jovem guia que lhes oferecia uma banana. um deles subiu em Bárbara.



fizemos a trilha conhecendo novas árvores. vimos um grande cacho de abelhas que podem nos levar a morte. e no alto de uma árvore uma linda coruja da Amazônia protegendo seu ninho.



dali fomos visitar as Vitória Régias de Dona Dulce e degustar suas receitas à base da planta. não fotografei as delícias do cardápio, pois não gosto de postar fotos de comida por respeito às pessoas que passam fome. fiz um retrato de Dulce. e encontramos o casal que tinha se hospedado em Campo de Heliantos.



seguimos rumos ao encontro das águas. no caminho, a beleza do canal nos propiciou o encontro com as andorinhas fazendo nosso verão mais bonito. no voo grupal faço cliques e num deles pego o momento em que uma delas carrega o peixe na boca.


ao sair do canal estamos num emaranhado de água. um barco solitário ilhado no centro desse lugar. sitiado. gosto como o idioma espanhol e o portugueses chamam lugar: sítio.



o reflexo sempre estonteante nas fotos.


começamos a nos aproximar de Santarém e a avistar o porto e seus navios.



lembro dos grãos do porto de Santos poluindo o mar e a comunidade de Nova Conceiçãozinha. uma favela sitiada pelo porto na região do Guarujá.



no milagre da natureza, as manchas do encontro das águas do Tapajós com o Rio Amazonas e sua água barrenta. não era por demais pedir mais alguma beleza e nesse momento recebemos a visita dos botos.



eles quiseram levar Bárbara, mas resisti bravamente e numa densa batalha anfíbia quase que eles levam-me de Bárbara. pensamos que a visita era por intermédio do encontro das água, mas estávamos em frente ao mercado do peixe de Santarém e por ali os botos apareciam para se alimentar dos peixes que caíam no rio.



fomos almoçar no restaurando do Saulo. não lembro muito bem o que comi esse dia, mas a vista do restaurante era realmente incrível.



dali, novamente, fomos ver o pôr do sol. Bonifácio, gentilmente, nos deixou à vontade enquanto caminhava pela praia numa ligação. entrei com a câmera no rio e fotografei Bárbara. tive uma visão fotográfica e apoiei a câmera popa do barco e programei ela pra dez segundos. eu e Bárbara nos beijamos.



ficamos muito felizes com a foto e guardei a câmera. ficamos abraçados nos sentindo dentro do rio. um abraço silencioso e profundo. não sei quanto tempo se passou...


Bonifácio nos alertou:


- olhem só, vocês estão tão bonitos aí que não perceberam, mas os botos estão rodeando vocês.


quando olhamos, a cerca de uns três metros, um dos botos saltou seu corpo pra fora das águas bem em frente ao raio de sol que se enfiava pelas frestas das nuvens. foram tantas coisas lindas que vi naquele momento que me senti um encantado da natureza. ao fim de todo encanto o silêncio é permanente numa vontade de não pensar.


voltamos com essas histórias de encantos para jantar com Grazi e Mair. combinamos de nos encontrar no fim da tarde do dia seguinte pra curtirmos um poucos nossas companhias. fomos mais cedo descansar.


na manhã seguinte desci pra pegar café. Mair já havia feito. esquentei o queijo manteiga e experimentamos. gorduroso, mas uma iguaria local. o italiano chegou à cozinha e deu bom dia. ignorei-o e subi pra levar café e queijo pra Bárbara, que experimentou:


- credo. gordura pura.

- é queijo manteiga.


disse rindo.


- VITOR! VITOR! VEM AQUI!

- que isso? – perguntou Bárbara.

- acho que o italiano despertou a Paraúcha de novo. deve estar reclamando de mim.

- não vai arranjar briga, hein Vitor. seja maduro.

- poetas não são maduros, meu amor.


desci as escadas de madeira e levantei poeira no curto caminho de terra entre às árvores. cheguei à cozinha e encontrei o italiano lavando seus legumes, Mair mastigando o queijo naquela posição de filme de western spaghetti e a Paraúcha sentada imponente.


- o que está acontecendo?

- o italiano está chateado porque você não o cumprimenta.

- foda-se!

- perguntou se você é homofóbico.

- pronto.


o italiano olhou pra mim.


- por que você não me cumprimenta?

- não sou obrigado a te cumprimentar. eu não gosto de você. você é uma pessoa chata e inconveniente. passa o dia reclamando e pedindo pras pessoas fazerem coisas pra você. julgando as pessoas.


ele abriu a boca ameaçando a falar.


- e para de me encher o saco se não vou perder a paciência com você.


calou-se e voltou aos seus afazeres. voltei ao quarto e contei a Bárbara o que aconteceu. ela achou que fui maduro da minha forma.


- pessoas chatas, inconvenientes e abusadoras eu corto de maneira grosseira pra ela nunca mais encher meu saco.


descemos e combinamos o encontro da tarde com Grazi e Mair. Maise veio nos buscar e contou um pouco de sua história, que está no livro que ela escreveu durante processo da oficina de escrita de Grazi no Campo de Heliantos. agradecemos muito o cuidado conosco e que foi um prazer conhecê-la. e que na volta iríamos encontrar Grazi e Mair e voltar com eles pra Heliantos.


já na embarcação com Bonifácio atravessamos entre a Ilha do Amor e o centro de Alter e fomos para um lado que ainda não tínhamos explorado. rumo à floresta encantada, que nesse momento do ano estava na maré baixa.



ao chegar na floresta encantada e silenciosa me vi numa cena de Senhor dos Anéis. um pântano e canoas abandonadas no caminho até que avistamos um rapaz numa delas. Bonifácio avisa que vamos passear e nós dois encantados nos beijamos. um homem local nos filma.


- ei, fiz um vídeo lindo de vocês.


a floresta está rasa e a gente observa as características dos troncos que ficam submersos parte do ano.



apesar da placa dizendo para se fazer silêncio na floresta para não espantar os bichos, um zumbido nos incomoda e cada vez que remamos chegamos mais perto do ruído.


o ruído da ruína. o que destrói a floresta. nosso amigo diz que é uma construção, mas não sabe dizer se é propriedade particular ou um hotel. o certo é que é uma construção num local que é proibido construir e que está arruinando parte da floresta e o seu silêncio. e isso me faz pensar sobre a imagem que temos da palavra ruína, como uma cidade pós guerra, um imóvel abandonado, uma cidade fantasma. eu vejo florestas em ruínas.


esse pensamento em ruínas está dentro desse corpo em ruínas. um homem da cidade branco. nascido à base de energia elétrica. crescido na periferia, porém no sobrado e não na viela, e não na favela. um homem que junto a sua família migrou da frente do bar do traficante para o condomínio de classe média alta onde o traficante em frente não precisa pagar a polícia para manter seu negócio. um homem branco de olhos claros que ao olhar pra trás se dá conta de que um homem indígena rema o barco para nós. estamos pagando. fomos ensinados a pagar para nos servirem. deveríamos estar felizes por estarmos pagando ao lembrar que nossos antepassados eram senhores escravagistas que açoitavam. mas eu não fico. eu sou o ruído do que arruina essa história. eu me entristeço.



tento me consolar na minha vida metropolitana. na metrópole virtual eu sou um prestador de serviços que muitas vezes se sente usado e humilhado. que se sente revoltado. que se sente sem voz nas negociações e acaba por aceitar certas circunstâncias. que engole sapos. mas eu não me consolo.


também não desço dali e empurro o barco, e não empunho o remo. dentro de alguns dias voltarei a minha posição de trabalhador freelancer sem direitos e muitas vezes explorado. a gente se acostuma a não se importar. a gente prefere não pensar. a gente aceita e segue em frente. sem felicidade plena. conscientemente hipócrita.


hipócrita observo as árvores e os pássaros e não acho nada daquilo bonito. não enxergo a liberdade. abraço e beijo Bárbara, pois é o único lugar que me sinto feliz.



ao sair do encontro com o encanto, é como o desencontro de um amor. estamos pensativos e silenciosos. quem quebra o silêncio é Bonifácio:


- essas árvores são tão antigas. quem dera a gente vivesse o mesmo tempo que elas.

- você tem medo de morrer?

- Deus me livre! eu não quero morrer, não.

- tem um amigo que dizia uma frase: "se eu morrer será contra a minha vontade".

- é sabido o amigo.

- era... ele já morreu, mesmo contra a vontade.


o silêncio ameaça a voltar...


- minha bisavó dizia que queria ficar pra semente. eu não sei bem o significado disso, mas entendia que ela queria viver pra sempre.

- pois eu também queria.

- sabe, se eu vivesse aqui, Bonifácio, também ia querer.

- onde você vive não?

- em São Paulo, na maior parte dos dias, a gente quer morrer.


Bonifácio nos deixou numa praia pra gente se refrescar no rio. mergulhamos e depois deitamos na canga sob a árvores. três caiaques se aproximavam de nós.


- pronto, viemos o mais longe possível e as pessoas vêm em nossa direção.

- VAMOS PERTO DELES. – gritou um deles.

- eles querem vir até nós. por que?


três pré aborrecentes largaram seus caiaques bem na nossa frente e nos deram oi. perguntaram algo e eu ignorei. Bárbara estava de olhos fechados.


- o que é isso?

- jovens pessoas inconvenientes.


eles ficaram nos rondando falando besteira que jovens pré adolescentes falam e depois se sentiram mal com meu silêncio e foram embora com seus caiaques.


no barco perguntamos a Bonifácio se havia algum restaurante por perto e ele disse que tinha um novo na Ilha do Amor.


- podemos ir lá?

- claro.

- mas queremos que você almoce com a gente. nosso convidado.

- opa, obrigado, Bárbara.



Bonifácio começou a nos chamar de amigo e fizemos algumas fotos juntos antes de degustar um delicioso Pirarucu e beber caipirinhas de frutas amazônicas.


no som do restaurante tocava sertanejo. chamei o rapaz que nos atendia e sugeri:


- posso fazer uma crítica construtiva?

- é claro.

- essa música aí, não tá rolando.

- ah podemos trocar. o que você quer ouvir?

- acho que pode ser o ritmo local. mete uma playlist de carimbo. pode ser?

- tem certeza?

- é claro!


almoçamos ao som de Pinduca:


“Oi mexe, mexe menina

Pode mexer sem parar

Você agora é a minha

Garota do tacacá


Rala, rala a mandioca

Espreme no tipití

Separa na tapioca

Apara no tucupí


Prepara meu tacacá

Gostoso como açaí”


pedimos pra Bonifácio nos deixar na Ponta de Muretá. ao chegarmos ali, nos despedimos de Boni, nosso amigo. talvez, nunca mais o veremos. dá saudade boa de lembrar as prosas com o amigo.


ligamos pra Grazi nos encontrar ali. ela e Mair vieram com a Bajara. Mair pôs a rede no mar enquanto eu cantava Dorival Caymmi.


“Ô canoeiro

Bota a rede

Bota a rede no mar

Ô canoeiro

Bota a rede no mar


Cerca o peixe

Bate o remo

Puxa a corda

Colhe a rede

Ô canoeiro

Puxa a rede do mar”


Grazi e Bárbara conversavam, Mair pescava e eu fotografava.



depois subimos na Bajara e resolvemos parar a Bajara em frente aos turistas ouvindo música alta e ficamos ali entre eles e o pôr do sol. e ríamos muito sem parar.


fomos ao centro comer e tomar sorvete. depois voltamos com a Bajara e atravessamos o lago à noite. no caminho tomei uma picada de formiga. por sorte não era tucandeira.



ao chegarmos em Heliantos o italiano aparece no portão e diz:


- seu gato branco está morto na cozinha. alguém precisa tirá-lo porque tenho que comer.


a notícia foi tão triste que nem percebemos a insensibilidade do italiano. caminhamos até a cozinha e lá nos deparamos com o corpo já sem vida do gatinho branco. lembrei de quando vi o corpo já sem vida do vizinho no chão do prédio após ele se jogar do oitavo andar às 6h da manhã. um corpo sem sinal vital, sem sentimento algum. um corpo morto. é sempre tão impactante. lembrei do rato que assassinei afogado na infância. a vida é essa cronologia onde temos a chance de amadurecer a ideia de que a morte um dia chegará. e nesse instante em que olho para o corpo inerte e sem vida do pequeno felino e revejo na memória recente os berços fúnebres das crianças que nem tiveram sequer tempo de sentir o que é ter ciência de que existe morte.

Mair recolheu o corpo e o colocou às margens do terreno onde o iria enterrar.


- que seja em latim, pois tudo que é vivo, morre.

- o irremediável da vida...

- Mair, abre outra cova, pois vou matar o italiano.


acordei no meio da noite. a floresta cantava. dizem que ela canta todas as noites que acontece a morte. ela canta todo dia. na floresta a vida e a morte é diária. até parece a cidade. ia ser difícil me acostumar com as paredes do quarto e o som do baile funk na comunidade vizinha. aqui a gente não perde o sono. a gente ganha a vida. abracei Bárbara e a beijei. ela acordou e eu disse que a amava.


no dia seguinte a ideia era passar o dia com Grazi e Mair. abastecemos a Bajara e fomos no seu ritmo para a praia Ponta de Pedras onde passamos um tempo sob as águas numa concha de areia que formou uma grande piscina aberta.


quando a fome bateu fomos até a praia e escolhemos um dos quiosques e pedimos peixe.



após o almoço voltamos à concha e lá propus que a gente comece cogumelos. Mair recusou por questões espirituais e respeitei. Grazi ficou reticente com medo de ficar louca pra sempre.


- come logo, Graziela. tu já é doida, Paraúcha.


dividimos o que eu tinha em três e ficamos ali um bom tempo conversando. fiquei observando as andorinhas na outra ponta da concha:


- meu amor, você quer chegar bem perto das andorinhas?

- quero.


fomos levando nossos corpos silenciosamente sob as águas do Tapajós. apenas a cabeça e o mundo e a contemplação nos levando de encontro a elas. chegamos muito próximos e elas começamos a nos contemplar e silenciaram também. ficamos ali como dois animais selvagens sem saber se estávamos sendo aceitos como amigos feito a garça, ou só elas estavam atentas a uma possibilidade prepadora. meu corpo era tomado de sensibilidade e parecia que eu me tornava qualquer outra coisa que não um ser humano que luta pela vida ingrata do mercado de trabalho. estava ali por algo mais valioso: a vida. a vida ou a morte. por se sentir vivo perante a natureza. eu, Bárbara, as andorinhas e todo o amor do mundo éramos algo divino e único. partes de um todo que se movimenta numa transfusão constante de átomos. a exatidão dos átomos! exátomos!


passaram-se anos.... a Bajara estava próxima a nós.


- vocês estão chapados? vamos embora.


subimos à Bajara e perguntei:


- bateu, Paraúcha?

- claro que não, Vitor.

- duvido!


começamos a voltar e no caminho sentia o vento e as gotas das águas dos rios. é sempre uma viagem olhar a água se despedaçar e de repente se tornar única nesse emaranhado.


faço um vídeo e peço pra falaram algo. não entendo nada do que dizem. o barulho do motor e do vento são altos. dias depois no silêncio do quarto escuto, com dificuldade, os dizeres de Mair:


- hoje, aqui, com Grazi, Vitor e Bárbara estão sendo os dias mais felizes da minha vida...


quando paramos para esperar o pôr do sol após um bom percurso de viagem, já sentia meu corpo ter passado pelo momento mais sensível da viagem. agora era aproveitar a descida para o pouso.


Grazi sentada sorria insistindo que não havia batido a onda. Mair nos acompanhava tomando cerveja.


em um determinado momento onde eu e Bárbara estávamos no barco pegando bebida, Mair começou a nos dizer coisas bonitas sobre a amizade dele com Grazi e sobre a amizade que construímos com ele naqueles dias. aquelas palavras nos fizeram derramar rios dos olhos. nós três abraçados choramos com a beleza que se é dizer os sentimentos de amizade. ao fundo a Paraúcha gritava:


- MAIR! PARA DE BEBER, MAIR!


nos juntamos, os quatro, de mãos dadas sentados na areia para ouvir mais palavras de Mair. uma oração de amizade. nós três na descida da viagem começamos a gargalhar incontrolavelmente. Mair ficou muito bravo, mas estava mais forte do que nós e ele não entendia, pois não estava na mesma viagem. não queria mais falar. demos uma bronca um no outro e imploramos pra ele falar com a gente. ele voltou e escutamos atentamente as palavras que nos serviu como um pacto de amizade.


no fim da fala, ao estarmos sendo quase carregados por mosquitos, Grazi falou:


- que hora boa pra falar de amor e amizade, Mair. estou sendo triturada.


gargalhamos de novo. dessa vez Mair também.


já escuro entramos na Bajara e as nuvens vinham surgindo escondendo a lua cheia. Mair parou o barco.


- parou por que, Mair? – disse Grazi.

- a lua.

- que lua, Mair? só tem nuvem.

- vai aparecer naquele buraco.

- falei pra você não beber, Mair. tem buraco nenhum ali.


ficaram numa discussão engraçada até que a lua surgiu, nebulosa e visível, no buraco que Mair disse.



- Grazi, ouça os povos da floresta. – disse.



rimos e ficando ali admirando a lua. fomos ao centrinho jantar e lá rimos mais um pouco antes de voltar a Campo de Heliantos pela última vez nessa viagem. tomamos banho e fomos aproveitar o quarto sem paredes pela última vez.


de manhã tomamos café com Grazi, Mair e Alan, que ia com a gente até Santarém para conhecer o Mercadão.


nos despedimos de Grazi ali. sempre triste seguir viagem e deixar amigos pra trás.



- te amo, Graziela Brum Paraúcha. muito obrigado por esses momentos.

- também te amo, Vitor. mas devolve meu Galáxias.

- putz... você percebeu?

- lógico!

- poxa... não se sai de um lugar sem roubar um livro. mas tá bem.


Anderlan veio nos buscar. entramos nós três e Mair que iria nos acompanhar.


- ô Vítu, você deu tchau pro italiano?

- nem fodendo. não há perdão para o chato. você gosta do italiano, Anderlan?

- pra falar a verdade, não também.

- o que ele te fez?

- nada demais.

- conta pra gente.

- ele ficou reclamando que eu estava com as janelas fechadas e com o ar ligado. dizia “estamos na Amazônia! abrimos a janela, han”. e eu respondia “é por isso que estou no ar condicionado. Amazônia é muito quente”.

- desculpe. no dia que nos buscou eu vim com a janela aberta.


rimos...


- tudo bem, você estava fotografando.


Anderlan nos deixou no mercadão onde procuramos por açaí para experimentarmos.


- peço quatro?

- meu amor, pede três e dou uma colherada do seu. vai que a gente não gosta.


Bárbara deu uma colherada e disfarçou o desconforto com o gosto.


- não gostou?

- experimenta você.


dei uma colherada e aquele gosto de terra pisada foi tomando meu corpo.


- credo... me vê uma água, por favor.


Alan foi mais longe. até a terceira colherada.


- que nota, Alan?

- de um a dez, zero.


Mair praticamente engoliu o dele.


- vocês não vão tomar?

- não conseguimos.

- pode deixar pra mim, então.


Mair mandou os três potes de açaí pra dentro. uma moça ao lado não aguentou a primeira colherada. disse que ia colocar açúcar e encheu o açaí com o pó branco.


- ecat... ficou ainda pior.


Alan, observando a cena, disse:


- moça, isso aí não é açúcar. é sal.



caminhamos pelo mercadão e adquirimos alguns produtos que nunca iríamos usar. os vendedores são muito persuasivos e a gente acaba comprando pela experiência do diálogo. e talvez para aproveitar um pouco mais da presença de Mair.


nos despedimos ali em frente ao Mercado. Alan e Mair seguiram pelo centro e Anderlan foi nos levar ao aeroporto. mais uma boa figura que passou por nossos dias. nos restaria agora uma longa viagem com duas paradas. a viagem direta a São Paulo nos custaria mais de 9 mil reais. chegamos à metrópole exaustos e com a desilusão de uma história de amor que se encerra. entramos na marginal tietê e o cheiro da cidade grande entupiu nossas narinas de merda.


enfrentar o cotidiano no inferno após a sensação do que a vida poderia ser nos deixa em estados de nervos.


dias depois mando mensagem pra Grazi com muita saudade dela, de Mair e de Campo de Heliantos e também de falar mal do italiano.


- olha, Vitor, nem me fale desse cara. mandei ele embora. não tinha condições.

- coitado... quem vai lavar as roupas dele agora?

- cara, você não sabe da última.

- me conte.

- estava andando com ele na rua e do nada apareceu uma mulher gritando: “ESSE ITALIANO É UM ESCROTO!”




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